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Artigo | A Estética da Finitude: Filmes que mudam como vemos a morte

O Sétimo Selo | Divulgação
O Sétimo Selo | Divulgação

Falar sobre a morte sempre foi, para o cinema, uma espécie de tabu e desafio, oscilando entre o luto silencioso e a catarse trágica ao lidar com o fim da vida. Porém, há cineastas que optaram por olhar para a morte com outros olhos, subvertendo expectativas e desarmando o espectador por meio do humor, do surrealismo ou de um lirismo que dissolve o peso costumeiramente atrelado ao tema.


Esses filmes não negam a morte, mas a ressignificam, propondo modos alternativos de se conviver com ela. Em vez de lágrimas, oferecem sorrisos e perplexidade, construindo um território estético onde o fim não é negação, mas parte de um ciclo maior e, muitas vezes, absurdamente belo.


Ingmar Bergman, um dos nomes mais reverenciados da história do cinema, talvez pareça uma escolha inusitada dentro dessa abordagem. Mas, em O Sétimo Selo (1957), Bergman criou uma das representações mais emblemáticas e, ao mesmo tempo, estilizadas da morte: a figura encapuzada que joga xadrez com um cavaleiro em busca de sentido.


O filme trata de angústia existencial e da ausência de Deus, mas há um deslocamento poético que afasta a narrativa da pura tragédia. A partida de xadrez com a Morte é, ao mesmo tempo, séria e irônica, solene e lúdica. Bergman joga com o artifício do teatro dentro do cinema e, com isso, humaniza o inumano. A morte, nesse contexto, deixa de ser apenas uma interrupção abrupta da vida para se tornar interlocutora, personagem, símbolo a ser interpretado.


Outro exemplo é o delicado Minha Vida de Abobrinha (2016), animação suíça dirigida por Claude Barras. Aqui, a morte aparece já na primeira cena, quando o protagonista, um menino que prefere ser chamado de Abobrinha, perde a mãe em um acidente. Mas em vez de se transformar num conto doloroso sobre luto infantil, o filme envereda por caminhos de afeto e reconstrução.

Minha Vida de Abobrinha | Divulgação
Minha Vida de Abobrinha | Divulgação

A estética do stop motion, com personagens de olhos imensos e expressivos, ajuda a suavizar a dureza do tema. A narrativa é terna, mas sem condescendência. A morte da mãe é o estopim para que Abobrinha descubra uma nova família num orfanato, repleto de outras crianças marcadas por perdas. É nesse espaço de dor compartilhada que a vida floresce novamente — não como negação da morte, mas como sua consequência possível. A leveza, nesse caso, é um gesto de resistência.


Já em Harold e Maude (1971), dirigido por Hal Ashby, a morte é abordada com um humor ácido encantador. O jovem Harold, obcecado por simulações de suicídio e funerais, conhece Maude, uma senhora de espírito livre que o ensina a abraçar a vida com intensidade e irreverência.


A diferença de idade entre eles, os comportamentos excêntricos e o romance improvável são apenas o pano de fundo para uma discussão mais profunda sobre o sentido da existência. Maude, que se aproxima do fim com uma serenidade quase mística, mostra a Harold que viver é um ato de escolha e liberdade. Ao transformar o mórbido em jogo e a velhice em reinvenção, o filme desconstrói os medos sociais sobre a finitude.


Esses filmes compartilham a ousadia de desafiar um dos maiores tabus da humanidade com graça e inteligência. Não se trata de ridicularizar a morte, mas de desarmar sua figura opressora, tornando-a passível de reflexão, empatia e até beleza.

Harold e Maude | Divulgação
Harold e Maude | Divulgação

Nesse gesto, o cinema encontra um terreno fértil para reelaborar nossos próprios modos de lidar com o fim. Ao utilizar a linguagem visual para criar distanciamentos, caricaturas ou lirismos — seja pelo uso de cores vibrantes, composições simétricas ou recursos de montagem não realista —, esses cineastas instauram uma poética da morte que foge do lamento e se aproxima da aceitação. Essa estética, que podemos chamar de "lúdica da finitude", não se restringe aos exemplos mencionados.


Filmes como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), embora não tratem diretamente da morte, flertam com a ideia da transitoriedade das coisas através de uma estilização do cotidiano. Em Amélie, a sensação de urgência e a valorização dos pequenos gestos denunciam uma consciência constante da efemeridade da vida. A morte está presente nas entrelinhas, como sombra sutil que realça a luz. Outras obras preferem o caminho do absurdo.


No cinema asiático, a morte também pode ser abordada com leveza e espiritualidade. Em A Partida (2008), do japonês Yôjirô Takita, um músico desempregado começa a trabalhar como "nokanshi", um profissional responsável pelos rituais de preparação de cadáveres para o enterro.


A princípio com repulsa, ele aos poucos passa a compreender a beleza solene do ritual, e o filme se transforma em um tributo à dignidade da morte. Aqui, o humor surge de situações cotidianas, mal-entendidos culturais e da ternura inesperada dos momentos. A morte é encarada como uma transição, não como ruptura.

A Partida | Divulgação
A Partida | Divulgação

Também merece destaque o trabalho da cineasta japonesa Naomi Kawase, que em filmes como Floresta dos Lamentos (2007) explora o luto e a presença dos mortos através da contemplação e da natureza, com sensibilidade profundamente enraizada em uma visão não ocidentalizada da existência.


A presença de mulheres e cineastas de grupos historicamente marginalizados nesse campo é cada vez mais expressiva, e seu olhar plural contribui para uma releitura sensível e expandida da finitude.


Em um mundo saturado por narrativas apocalípticas e dramas intensos, essas abordagens oferecem uma pausa, uma brecha poética e existencial. Não eliminam a dor, mas propõem que a dor também pode ser acompanhada de riso, de encanto e de surpresa.


Tal abordagem, além de narrativa, é também formal: dissolve-se o peso do trágico por meio do ritmo, da cor, da fabulação. Em vez de impor uma catarse, esses filmes cultivam espaços de escuta e contemplação. Para o espectador contemporâneo, imerso em lógicas de excesso e velocidade, esse tipo de cinema atua quase como um antídoto — um convite à desaceleração emocional e ao acolhimento do inevitável.


Talvez o maior poder desses filmes esteja em nos ensinar a ver a morte não como um fim abrupto, mas como narrativa. Ao transformar a finitude em linguagem, eles não apenas reelaboram o luto, mas o tornam transmissível, comunicável. E ao fazer da morte uma história contada — com humor, fantasia ou leveza —, o cinema nos oferece aquilo que talvez mais tememos perder: a continuidade do sentido.


Essa subversão narrativa é, muitas vezes, um gesto político. Recusar a morte como espetáculo trágico pode ser um modo de resistir ao sensacionalismo, à vitimização compulsória e às representações estereotipadas do sofrimento. A leveza torna-se então uma estratégia crítica, capaz de revelar o que está por trás do medo: a vontade de permanecer, de criar vínculos e de significar a existência.

Floresta dos Lamentos | Divulgação
Floresta dos Lamentos | Divulgação

Em um plano mais filosófico, essas obras dialogam com a noção de "ser-para-a-morte", proposta por Martin Heidegger. Para o filósofo alemão, a consciência da morte é o que confere autenticidade à vida. No entanto, ao inverter a perspectiva dramática dessa ideia, os cineastas mencionados parecem sugerir que o confronto com a morte não precisa se dar pela angústia, mas pode vir pelo encantamento. Não se trata de negar a finitude, mas de dançar com ela.


Por fim, é interessante observar como essas abordagens reverberam em públicos diversos. Crianças, jovens e adultos podem encontrar nesses filmes uma forma mais acessível de falar sobre temas difíceis, ampliando a potência do cinema como ferramenta de educação emocional. A linguagem do humor, da fantasia e do lirismo rompe barreiras culturais e emocionais, convidando o espectador a pensar sobre o fim sem medo, e a celebrar, paradoxalmente, a própria vida.


O cinema que sorri diante da morte nos lembra que há espaço, sim, para beleza, riso e leveza onde antes só havia silêncio. E talvez esse seja um dos legados mais poéticos que a arte pode oferecer à nossa condição humana: a possibilidade de encarar o inevitável sem perder a ternura e a imaginação.

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