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Artigo | A Estética do Terror: Como a imagem cria medo e tensão

Men - Faces do Medo | Divulgação
Men - Faces do Medo | Divulgação

É fascinante como o cinema de terror, um dos gêneros mais antigos e populares que existem, tem essa força incrível. Ela reside, sobretudo, na habilidade de manipular emoções humanas e evocar o medo — uma das reações mais primitivas, universais e visceralmente humanas.


Ao longo do tempo, diretores e artistas visuais do gênero vêm desenvolvendo um repertório cada vez mais refinado de estratégias estéticas destinadas a intensificar a sensação de tensão, construindo atmosferas densas que envolvem o espectador por completo. Entre todos os elementos que compõem essa construção sensorial, a imagem desponta como um dos recursos mais importantes na criação do medo.


A análise da estética visual do cinema de terror revela uma intricada rede de escolhas conscientes que envolvem iluminação, composição, movimento de câmera e paleta de cores. Esses elementos não atuam de forma isolada, mas conversam com o design sonoro e a própria atuação dos intérpretes, ampliando o efeito emocional de cada cena.


Além disso, é possível observar que diferentes subgêneros do terror utilizam essas ferramentas de formas diversas, resultando em respostas igualmente variadas no público — do susto imediato à inquietação psicológica persistente.


O cinema, como linguagem audiovisual, possui uma capacidade única de manipular a percepção sensorial. No contexto do terror, essa manipulação extrapola o nível meramente narrativo e assume um papel ativo na criação da tensão.

Skinamarink – Canção de Ninar | Divulgação
Skinamarink – Canção de Ninar | Divulgação

A imagem, nesse caso, não apenas mostra: ela insinua, esconde, perturba e, sobretudo, prepara o terreno para o medo. A composição do quadro e os movimentos de câmera se tornam elementos narrativos em si mesmos. Uma câmera que desliza lentamente por um corredor vazio ou permanece estática diante de uma porta entreaberta pode provocar uma antecipação angustiante.


Nessas situações, o silêncio que antecede o clímax — em conjunto com a imagem — se torna ensurdecedor, amplificando ainda mais a sensação de iminência do terror.


Um exemplo dessa manipulação visual se encontra em O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick. O diretor explora longos corredores do hotel Overlook com movimentos de câmera que dão uma sensação de vazio e imensidão opressiva. O ritmo deliberadamente lento, aliado ao uso preciso de iluminação e enquadramentos, posiciona o espectador em constante vulnerabilidade. A imagem se transforma em uma experiência de espera tensa, em que o medo não vem apenas do que é mostrado, mas do que se antecipa.


Nesse processo de criação do medo, a iluminação assume um papel importantissimo. Mais do que um recurso técnico, ela atua como linguagem simbólica que direciona o olhar, define atmosferas e distorce percepções.


A manipulação da luz e da sombra, especialmente no cinema de terror, contribui para acentuar a incerteza e o desconforto. O jogo entre o claro e o escuro frequentemente evoca o medo do desconhecido, sugerindo que há algo escondido à espreita, prestes a emergir da escuridão.

Nosferatu (1922) | Divulgação
Nosferatu (1922) | Divulgação

As sombras, em especial, carregam significados simbólicos profundos no gênero. Luzes baixas, ângulos oblíquos e sombras alongadas criam uma sensação de ocultamento e insegurança, fazendo com que o que não se vê torne-se ainda mais ameaçador do que aquilo que é explicitamente mostrado.


Essa abordagem já se fazia presente no expressionismo alemão, como evidencia o clássico Nosferatu (1922). Através do uso dramático de contrastes luminosos e sombras distorcidas, o filme transforma seu antagonista em uma entidade ainda mais aterrorizante. O vampiro, nesse contexto, não é apenas uma criatura monstruosa, mas uma manifestação do próprio medo que se insinua nas paredes, escadas e corredores.


Já o longa A Bruxa (2015), de Robert Eggers, demonstra como a iluminação natural, feita com velas e luzes suaves, pode gerar uma atmosfera opressiva sem recorrer ao excesso de escuridão. A ausência de luz artificial contribui para criar um ambiente isolado e crível, onde o medo não é apenas visual, mas sensorial. A iluminação tênue amplifica o senso de vulnerabilidade dos personagens — e, por consequência, do próprio espectador.


Outro recurso expressivo amplamente utilizado no cinema de terror é o uso simbólico das cores. A psicologia das cores tem um papel significativo na evocação de emoções específicas e na construção de atmosferas.


Tons avermelhados são comumente associados ao sangue, à violência e ao perigo iminente; verdes e azuis evocam o estranho e o sobrenatural; o preto carrega o peso simbólico da morte e do desconhecido, enquanto o branco, em contextos distorcidos, pode sugerir a ausência de vida ou esperança.

Suspiria (1977) | Divulgação
Suspiria (1977) | Divulgação

Em Suspiria (1977), Dario Argento faz uso de uma paleta vibrante e surrealista, dominada por vermelhos intensos, azuis e verdes. A cor deixa de ser um mero elemento estético para se tornar parte ativa do horror. A atmosfera onírica do filme é profundamente moldada por essa abordagem cromática, que reforça a sensação de deslocamento e perturbação. Assim, o espectador não apenas vê o terror — ele o sente, imerso em um pesadelo visual.


Nesse mesmo sentido, o movimento da câmera contribui para o aumento da tensão e da expectativa. Diretores de terror frequentemente optam por movimentos lentos e contínuos, que prolongam o suspense e mantêm o público em constante estado de alerta.


O uso do plano-sequência, por exemplo, cria uma imersão maior na narrativa, eliminando a segurança oferecida pelos cortes. A continuidade visual prolongada faz com que o espectador sinta-se preso dentro da cena, acompanhando os personagens por espaços opressivos, sem saber quando ou de onde virá o susto.


Um ótimo exemplo dessa técnica é encontrado em Hereditário (2018), dirigido por Ari Aster. Embora o filme utilize cortes em sua montagem, muitos de seus planos são longos e cuidadosamente coreografados, com movimentos suaves de câmera que exploram o espaço com uma lentidão proposital.


Essa escolha retarda o clímax e intensifica o suspense. A demora não frustra — ela prepara. Cada segundo de espera prolonga a tensão psicológica, transformando o silêncio e a expectativa em elementos ameaçadores por si só.

Hereditário | Divulgação
Hereditário | Divulgação

Embora a imagem seja o foco principal da construção estética no cinema de terror, não se pode ignorar o papel fundamental do design sonoro e da música. Sons agudos, distorcidos ou inesperados são frequentemente usados para intensificar o impacto visual, enquanto trilhas sonoras dissonantes ou minimais criam estados de ansiedade contínua.


O uso calculado do silêncio também desempenha um papel estratégico, pois a ausência de som pode ser tão perturbadora quanto um grito. A música estridente de Bernard Herrmann em Psicose (1960), especialmente na cena do chuveiro, é exemplo clássico de como som e imagem podem se fundir em uma experiência sensorial aterradora.


Agora, falando de terror contemporâneo que brinca com a estética e o psicológico, Pearl (2022), de Ti West, se destaca por misturar o horror com o melodrama clássico, criando um contraste perturbador entre a paleta de cores vibrantes — inspirada nos musicais da Era de Ouro de Hollywood — e a brutalidade crescente da narrativa.


A protagonista, interpretada por Mia Goth, vive num universo visual saturado de vermelho, amarelo e azul, que remete a uma fantasia idealizada de juventude e aspiração, mas que rapidamente se desfaz em atos de violência psicológica e física.


Essa estilização exagerada da imagem opera em sentido duplo: ao mesmo tempo em que distancia o espectador do realismo tradicional do terror, aproxima-o do delírio subjetivo da personagem, cuja fragilidade mental se revela na justaposição entre beleza formal e colapso emocional.

Pearl | Divulgação
Pearl | Divulgação

Essa escolha estética reforça a tensão interna do filme, desestabilizando expectativas visuais e narrativas, algo que críticos como James Kendrick definem como "estética da dissonância", um uso consciente da beleza visual para provocar desconforto.


No extremo oposto dessa proposta visual exuberante, Skinamarink – Canção de Ninar (2022), de Kyle Edward Ball, oferece uma experiência sensorial abstrata, em que a imagem se torna menos representação do mundo e mais encarnação do medo. Filmado com baixíssima luz, grão de vídeo digital e longas sequências de silêncio ou murmúrios indecifráveis, o longa rompe com a linguagem tradicional do cinema narrativo.


As cenas — muitas vezes fixas ou apenas levemente tremidas — mostram fragmentos de corredores escuros, tetos, brinquedos ou televisões estáticas, obrigando o espectador a buscar sentido onde não há clareza visual. A ausência de rostos e a fragmentação dos corpos evocam uma sensação de despersonalização e perda da realidade.


Esse tipo de estética lembra o conceito de “uncanny” freudiano, o inquietante familiar que se torna estranho, e encontra eco nos estudos de Laura U. Marks sobre a estética do tátil e do cinema sensorial, onde o apagamento da nitidez da imagem conduz a uma experiência tátil e memoriada do medo.


Skinamarink não busca provocar sustos convencionais, mas reconstituir a atmosfera dos terrores infantis, como se estivéssemos presos em um pesadelo sem lógica nem resolução.

Skinamarink – Canção de Ninar | Divulgação
Skinamarink – Canção de Ninar | Divulgação

Men - Faces do Medo (2022), de Alex Garland, trabalha com imagens simbólicas e uma mise-en-scène cuidadosamente controlada para articular o horror psicológico e o corpo grotesco. A repetição de rostos masculinos e a transformação física de personagens, por meio de efeitos práticos e digitais, constroem uma metáfora visual sobre o trauma e a opressão. Aqui, a imagem é veículo de um terror que é ao mesmo tempo íntimo e estrutural, revelando o poder da linguagem visual na construção de discursos complexos.


Por outro lado, Fale Comigo (2022), dirigido pelos irmãos Philippou, incorpora a estética digital contemporânea para explorar o impacto das redes sociais e da viralização do horror. A câmera ágil, os cortes rápidos e a encenação próxima dos realities criam uma linguagem familiar ao público jovem, o que potencializa a identificação com os personagens e a imersão na narrativa. A estética digital, neste caso, se transforma em instrumento de contágio, tanto do mal sobrenatural quanto da experiência coletiva do medo.


Essa tendência contemporânea de utilizar a estética visual como principal veículo de tensão e estranhamento também se manifesta de forma singular em Entrevista com o Demônio (2023), dos irmãos Colin e Cameron Cairnes. O filme simula a transmissão de um programa televisivo ao vivo dos anos 70, incorporando não apenas a estética da época, mas também os códigos visuais e sonoros próprios da linguagem televisiva, como enquadramentos fixos, o uso de múltiplas câmeras, a presença de uma plateia ao vivo e a textura granulada da imagem.


Ao adotar esse formato, o longa constrói uma atmosfera de realismo documental que desestabiliza o espectador ao inserir o horror dentro de um espaço midiático supostamente seguro e familiar.


O uso de efeitos práticos, alinhado à fidelidade estética da época, contribui para criar uma sensação de autenticidade perturbadora. Mais do que isso, o filme faz um comentário metalinguístico sobre a espetacularização do sofrimento e a exploração do paranormal pela mídia sensacionalista. À medida que o programa televisivo mergulha no caos, a imagem se degrada e revela a fragilidade da realidade construída pela transmissão.


Assim, o terror emerge não apenas do conteúdo sobrenatural da narrativa, mas também da deterioração visual do próprio meio de comunicação, que colapsa diante do desconhecido. Essa escolha não só sustenta o clima de tensão constante, como também atualiza o papel da imagem no terror: não mais como simples representação do medo, mas como parte ativa na construção de uma realidade instável e ameaçadora.

Entrevista com o Demônio | Divulgação
Entrevista com o Demônio | Divulgação

Em todos esses exemplos, dá pra ver como a evolução dos efeitos visuais e da tecnologia digital ampliou as possibilidades expressivas do gênero, mas também trouxe novos desafios.


A busca por ser real demais em algumas produções contemporâneas, por exemplo, pode resultar em uma espécie de “achatamento sensorial”, como aponta Lev Manovich em The Language of New Media: a fluidez técnica e a perfeição digital às vezes sacrificam a aspereza, a textura e a ambiguidade das soluções mais rudimentares, que eram comuns no horror analógico.


A imagem excessivamente limpa pode eliminar o ruído e o mistério que tantas vezes alimentam o medo. Por isso, obras como Skinamarink ou Entrevista com o Demônio funcionam como contrapontos importantes, reabilitando a precariedade como elemento estético e psicológico.


O cinema de terror, ao longo de sua história, sempre refletiu os medos do seu tempo. Se nas décadas anteriores a ameaça vinha de monstros externos — vampiros, zumbis, alienígenas —, hoje ela parece vir de dentro: do corpo, da mente, da memória, da imagem.


A estética visual desse cinema, portanto, não é apenas uma camada de enfeite sobre a narrativa, mas uma ferramenta essencial de construção do medo. Seja nas composições precisas de O Iluminado, na luz orgânica de A Bruxa, no expressionismo de Nosferatu ou nas distorções sensoriais de Skinamarink, a imagem continua a ser a principal via de acesso ao terror.


Num mundo com tanto estímulo visual, o terror se reinventa formalmente. E talvez, ao nos fazer encarar o que há de mais incômodo — o silêncio, a escuridão, o espaço vazio ou um rosto que nos perturba — ele nos ensine mais sobre os limites da imagem e, por consequência, sobre os nossos próprios.

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