Artigo | Cinema de Protesto: Desafiando Regimes e Ideologias
- Jam Nascimento
- 22 de mai.
- 5 min de leitura

O cinema, enquanto forma artística e meio de comunicação, sempre carregou em seu íntimo a possibilidade de contestar a ordem estabelecida. Desde os seus primórdios, cineastas ao redor do mundo utilizam a linguagem audiovisual não apenas para entreter, mas como instrumento de denúncia, resistência e transformação social.
O chamado cinema de protesto se refere a um conjunto de práticas cinematográficas que, com diferentes estéticas e estratégias, buscam confrontar estruturas de poder, denunciar injustiças e propor novas formas de ver e viver o mundo.
Em contextos de repressão política, injustiça social ou crises ideológicas, o cinema se torna um espaço de insurgência simbólica, um grito de protesto que transcende barreiras nacionais e linguísticas.
A figura do cineasta-protesto encarna essa missão, utilizando a câmera como uma arma de resistência contra regimes autoritários, políticas excludentes e estruturas de poder opressoras.
Ken Loach, cineasta britânico, representa uma das vozes mais persistentes e influentes do cinema político contemporâneo. Sua obra se caracteriza por um compromisso profundo com as classes trabalhadoras e marginalizadas da sociedade britânica. Filmes como Kes (1969), Riff-Raff (1991) e Eu, Daniel Blake (2016), denunciam as falhas do sistema de bem-estar social britânico, mas também expressam uma empatia radical por seus personagens.
Loach rejeita o espetáculo em favor de uma estética realista, que aproxima o público da realidade dura e cotidiana de milhões de pessoas. Seu cinema é um ato de solidariedade, um gesto de escuta e visibilidade para aqueles que o sistema insiste em calar.

A herança do Cinema Novo brasileiro, especialmente na figura de Glauber Rocha, oferece outro paradigma do cineasta-protesto. Rocha concebeu um cinema que refletisse a realidade brasileira, mas que também a confrontasse com vigor e inventividade estética.
Seu famoso lema "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça" sintetiza a urgência e a criatividade de uma geração de cineastas comprometidos com a transformação social.
Filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967) incorporam elementos do barroco, do teatro e da literatura para criar alegorias políticas de grande potência simbólica. Rocha não se limitou a denunciar a opressão; ele propôs um cinema insurgente, capaz de imaginar novas formas de organização política e de existência coletiva.
No contexto europeu do pós-soviético, o cineasta ucraniano Sergei Loznitsa se destaca por um olhar crítico e profundamente analítico sobre os traumas históricos e as ambiguidades da memória coletiva.
Seus documentários e filmes, como Minha Felicidade (2010), Na Neblina (2012) e Maidan: Protestos na Ucrânia (2014), investigam os resquícios da dominação soviética e as tensões do presente político ucraniano.
Loznitsa constrói narrativas que recusam o conforto da explicação fácil, oferecendo ao espectador imagens cruas e inquietantes, que exigem reflexão e posicionamento ético.
Seu cinema de protesto é menos explícito que o de Loach ou Rocha, mas não menos radical: ao recusar a manipulação emocional e apostar na ambiguidade moral, ele desafia as certezas do espectador e o obriga a enfrentar o desconforto da história.

Mas o cinema de protesto não se limita a uma estética realista ou narrativa linear. Ele também se manifesta em formas experimentais e simbólicas: do cinema-ensaio ao afro futurismo, da animação politizada ao documentário performativo.
Filmes como Martírio (2016), de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida, por exemplo, entrelaçam documentário, arquivo e denúncia para dar voz à luta dos povos indígenas brasileiros — ressignificando o uso da imagem como escudo e denúncia.
A presença de cineastas oriundos de grupos historicamente marginalizados tem sido primordial na renovação do cinema de protesto. A senegalesa Safi Faye, por exemplo, foi uma das primeiras mulheres africanas a dirigir um longa-metragem e, em títulos como Carta Camponesa (1975), denuncia as consequências do colonialismo e as desigualdades rurais por meio de uma linguagem híbrida entre ficção e documentário.
Sua perspectiva feminina e africana amplia o escopo do protesto cinematográfico ao incorporar formas de resistência que partem da experiência cotidiana e comunitária.
Em regimes autoritários, o ato de filmar pode ser, por si só, um gesto de coragem e insubmissão.
Durante a ditadura militar no Brasil, cineastas como Eduardo Coutinho, com Cabra Marcado para Morrer (1984), enfrentaram a repressão estatal para dar voz aos camponeses e militantes perseguidos. No Irã contemporâneo, Jafar Panahi desafia o regime ao continuar filmando mesmo proibido, produzindo obras clandestinas como Isto Não é um Filme (2011), gravado parcialmente com um iPhone dentro de seu apartamento.

Esses exemplos mostram que o cinema de resistência não depende somente de grandes recursos, mas sobretudo de uma urgência ética. Mesmo em democracias liberais, onde teoricamente existe liberdade de expressão, o cinema de protesto enfrenta obstáculos.
A indústria cinematográfica, cada vez mais dominada por conglomerados e lógicas de mercado, tende a marginalizar obras que confrontam as estruturas de poder.
O próprio Ken Loach enfrentou resistência por parte da BBC e de distribuidoras britânicas, e diversos cineastas têm recorrido a financiamentos alternativos, festivais independentes e plataformas digitais para viabilizar seus projetos.
Nesse sentido, o papel do espectador também se transforma. A circulação digital ampliou o acesso, mas trouxe novos desafios: o excesso de conteúdos, a efemeridade das imagens e a dificuldade de engajamento crítico.
A responsabilidade não está só nas mãos de quem filma, mas também de quem assiste, compartilha, debate e sustenta uma rede de resistência cultural. O protesto, hoje, é também uma prática coletiva entre realizadores e públicos.
Historicamente, momentos de crise política e social impulsionam o florescimento de um cinema engajado. Durante o fascismo italiano, cineastas como Roberto Rossellini, com Roma, Cidade Aberta (1945), utilizaram o realismo para denunciar os horrores da ocupação nazista.
Na América Latina dos anos 60 e 70, movimentos como o Cinema de Libertação argentino e o Cinema Imperfeito cubano buscaram criar um cinema diretamente vinculado à luta revolucionária.

O cinema chileno revisitou os traumas da ditadura de Pinochet, com produções como No (2012), de Pablo Larraín, que examina a campanha pelo referendo que ajudou a encerrar o regime.
O legado do cineasta-protesto resiste no presente e se reinventa com as novas tecnologias e formas de circulação. Movimentos como Black Lives Matter ou protestos pró-democracia em Hong Kong encontram eco em documentários e curtas-metragens produzidos por coletivos anônimos ou cineastas em início de carreira. O protesto cinematográfico, nesse novo ecossistema, torna-se mais horizontal, imediato e colaborativo, mas também mais vulnerável à dispersão e ao ruído.
Ainda assim, permanece a importância de obras autorais profundamente comprometidas com sua visão de mundo. Rithy Panh, no Camboja, confronta os crimes do Khmer Vermelho em A Imagem que Falta (2013); e Patricio Guzmán, no Chile, segue investigando os vínculos entre memória e política em filmes como O Botão de Pérola (2015). Essas vozes mantêm viva a tradição do cinema como ferramenta de resistência, cada uma à sua maneira, em diferentes contextos históricos e culturais.
A história do cinema mostra que nenhuma tentativa de silenciamento é definitiva diante da persistência do olhar crítico. O cineasta-protesto, ao filmar o que não se quer mostrar e ao dar voz a quem foi silenciado, transforma a linguagem cinematográfica em uma forma de insubordinação. Seu compromisso vai além da estética: é um pacto com a verdade, a justiça e a memória.
E mesmo quando seus filmes são marginalizados, censurados ou esquecidos, sua existência permanece como testemunho de resistência. Porque enquanto houver opressão — e enquanto houver olhos dispostos a ver — haverá cineastas dispostos a enfrentá-la com a luz incômoda de suas imagens.
Comentários