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Artigo | O Cinema Letão e Flow: Entre Memória e Futuro

Flow (2024) | Divulgação
Flow (2024) | Divulgação

O cinema letão foi marcado pela história, pelas lutas e conquistas, refletindo o avanço político e cultural do país. Desde o início do século XX, a cinematografia letã evoluiu em influências externas, primeiramente do cinema europeu, posteriormente do regime soviético. A ocupação soviética viu a indústria letã fortemente regulamentada e estatalmente financiada como um veículo ideológico de propaganda.


Apesar disto, os cineastas locais acharam formas de incorporar o elemento cultural e identitário, tratando temas relacionados à história e tradição nacional. Produtos desse período, restritos em autonomia estilística, contribuíram para formar a linguagem visual-narrativa do cinema letão.


A partir da declaração da independência da Letônia em 1991, o cinema letão foi radicalmente transformado. A ausência estatal forçou os cineastas a encontrar parcerias internacionais, o que tornou a cinematografia nacional, ao mesmo tempo que guardava traços de identidade nacional, também aberta à influência externa e à coprodução.


Os primeiros anos do cinema letão independente estiveram marcados pela experimentação e pelas lutas econômicas, mas também por um esforço em expandir as temáticas tratadas, refletindo as preocupações locais assim como as preocupações universais.


Dentro desse contexto de evolução e adaptação, a animação letã surgiu como um dos produtos mais inovadores do cinema letão. A análise da animação letã demonstra um amadurecimento no tratamento visual e na narratividade.

Gints Zilbalodis | Reprodução
Gints Zilbalodis | Reprodução

Durante o período soviético, a animação foi, assim como o live-action, um veículo propagandístico, mas também guardava seu lugar na experimentação visual. Os animadores letões desenvolveram uma identidade própria, frequentemente recorrendo à estilização do folclore e da mitologia nacional para evitar a censura e criar filmes que dialogassem com a população de maneira sutil e simbólica.


A evolução em direção a um mercado cinematográfico menos censurado e internacionalizado permitiu que o cinema letão de animação experimentasse recursos inovadores e novas abordagens narrativas.


Uma das personalidades que se destacam nesse movimento é o cineasta Gints Zilbalodis, conhecido por seu uso inovador da linguagem visual em suas produções. Seu filme Projām (2019) foi um divisor de águas para a animação letã, conquistando reconhecimento em festivais internacionais e demonstrando o potencial da cinematografia letã para competir em nível global.


Projām (2019) | Divulgação
Projām (2019) | Divulgação

Esse caminho trilhado por cineastas independentes e inovadores levou à produção de Flow em 2024, um longa-metragem de animação que representa o auge do desenvolvimento técnico e artístico da animação letã.


Dirigido por Gints Zilbalodis e produzido com o software de código aberto Blender, Flow adota uma abordagem visual minimalista, eliminando a necessidade de diálogos e confiando exclusivamente na imagem para contar sua história. A narrativa do filme reforça a identidade contemplativa do cinema letão.


Flow: Solidão, Natureza e Existencialismo


Um dos principais temas de Flow é a solidão e o sentimento de deslocamento, representados pela jornada solitária do protagonista, um gato que vaga por uma paisagem pós-apocalíptica.


Essa temática ressoa fortemente com a realidade letã contemporânea, especialmente em relação ao êxodo populacional enfrentado pelo país. Desde sua independência da União Soviética, a Letônia tem lidado com um declínio populacional significativo, resultado de baixas taxas de natalidade e um fluxo contínuo de emigração para países da União Europeia.


A sensação de isolamento também pode ser interpretada como uma metáfora para a busca da Letônia por identidade no cenário global. A nação passou por séculos de dominação estrangeira — do Império Sueco e do domínio czarista russo até a ocupação soviética —, e essa herança ainda ressoa nas gerações mais jovens, que tentam equilibrar o legado histórico com a modernidade europeia. Flow captura essa sensação de desajuste ao criar um ambiente onírico onde o protagonista busca conexão, mas constantemente se vê diante de obstáculos.


Outro aspecto importante é sua forte conexão com a natureza, um tema que dialoga diretamente com a identidade letã. A Letônia é um país marcado por vastas florestas, rios e um profundo respeito pelas tradições ecológicas. A cultura local preserva um vínculo espiritual com o meio ambiente, evidente nas celebrações pagãs e no modo como a natureza influencia a arte e a literatura nacional.

Flow (2024) | Divulgação
Flow (2024) | Divulgação

No filme, a paisagem natural se apresenta como um personagem em si, ora acolhedora, ora hostil, refletindo a relação ambígua entre o ser humano e o mundo natural. Essa dualidade pode ser vista como uma resposta ao impacto ambiental da industrialização e do crescimento urbano na Letônia.


Apesar de ser um dos países mais verdes da Europa, a Letônia enfrenta desafios relacionados à sustentabilidade e à preservação de seus ecossistemas. Flow sugere uma reflexão sobre o papel do indivíduo nesse contexto, questionando até que ponto a humanidade pode coexistir harmoniosamente com a natureza.


A busca por identidade também permeia a narrativa da animação. Como mencionado há pouco, o protagonista é um viajante solitário em um mundo fragmentado, sem uma história ou destino definidos. Essa jornada introspectiva ecoa as reflexões existenciais que marcam a sociedade letã moderna.

Flow (2024) | Divulgação
Flow (2024) | Divulgação

Após décadas de influência soviética, a Letônia passou por um intenso processo de reconstrução cultural e política, reafirmando suas tradições e língua enquanto se enquadrava. Esse dilema entre o passado e o futuro é refletido na narrativa minimalista e simbólica do filme.


Além disso, a Letônia tem uma tradição literária e filosófica marcada por questionamentos existenciais, algo que se traduz na estética melancólica de Flow. A obra lembra as pinturas atmosféricas de Janis Rozentāls e a poesia de Rainis, dois ícones da cultura letã que exploravam temas de alienação e transformação. Dessa forma, Flow traz uma reflexão artística ainda mais profunda sobre a identidade nacional e a condição humana.


O Favorito ao Oscar


Desde sua estreia na seção Un Certain Regard do Festival de Cannes em 2024, Flow acumulou diversos prêmios, incluindo o Prêmio Cristal de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy.


Com uma recepção extremamente positiva, o filme chegou ao seu auge ao ser indicado ao Oscar de Melhor Animação em 2025. Essa nomeação representa um marco histórico para o cinema letão, uma vez que é a primeira vez que uma produção do país alcança essa categoria na premiação.


O reconhecimento internacional reafirma a qualidade e o impacto da animação letã, consolidando o país como um dos polos emergentes da animação mundial.


A ascensão da animação letã e o sucesso de Flow também têm implicações para o futuro do cinema do país. A crescente visibilidade internacional pode atrair investimentos e colaborações com outras nações, facilitando o financiamento de novas produções e permitindo que cineastas letões continuem explorando narrativas inovadoras.

Flow (2024) | Divulgação
Flow (2024) | Divulgação

Além disso, esse reconhecimento abre espaço para que novas gerações de animadores letões possam surgir e consolidar um mercado cinematográfico sustentável e criativo no país.


O crescimento da animação letã é um exemplo excelente de como a arte pode prosperar mesmo em contextos históricos desafiadores. A evolução do cinema letão, desde suas origens documentais e propagandísticas até a produção independente e autoral contemporânea, reflete um processo contínuo de adaptação e inovação.


Apesar de favorito a estatueta, independentemente do resultado no Oscar, Flow já entrou para a história como um marco da cinematografia letã e um símbolo do potencial criativo do país. Com isso, o cinema letão possui um caminho aberto para continuar a evoluir e a surpreender o mundo com sua capacidade de contar histórias de maneira visualmente impactante e artisticamente distinta.



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