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Artigo | Cinema Onírico: Arte, Inconsciente e a Estética do Sonho

O Espelho | Divulgação
O Espelho | Divulgação

O cinema, desde sua origem, sempre foi uma linguagem propensa à evocação de imagens oníricas. O próprio ato de assistir a um filme — sentar em uma sala escura, deixar as imagens e os sons te levarem, esquecer da vida lá fora por um tempo — é profundamente semelhante à experiência do sonho.


Gilles Deleuze, em seus estudos sobre cinema, apontava que a imagem cinematográfica possui uma temporalidade própria, desconectada da linearidade da vida comum, mais próxima da lógica do inconsciente do que da razão.


Essa semelhança entre o sonho e o cinema se manifesta não apenas na forma, mas no conteúdo, no modo como certas obras constroem narrativas labirínticas, simbólicas, subjetivas.


Entre os cineastas que mais exploraram essa estética do sonho estão David Lynch, Andrei Tarkovsky e Federico Fellini, cujos filmes mergulham no inconsciente e constroem atmosferas carregadas de mistério, ambiguidade e poesia.


David Lynch, em especial, é considerado o mestre da linguagem onírica no cinema contemporâneo. Em Cidade dos Sonhos (2001), o diretor constrói uma narrativa fragmentada, onde os limites entre realidade e ilusão se dissolvem.

 Cidade dos Sonhos | Divulgação
 Cidade dos Sonhos | Divulgação

O filme se apresenta como um quebra-cabeça no qual o espectador é convidado a reconstruir os significados a partir de fragmentos soltos, associações simbólicas e imagens que remetem diretamente à experiência dos sonhos.


Lynch não oferece respostas fáceis — pelo contrário, ele potencializa a dúvida, o mistério, a sensação de que há algo além do que é mostrado. Como em um sonho, as cenas do longa operam por meio da lógica do inconsciente: mudanças súbitas de identidade, espaços que se transformam sem explicação, personagens que parecem existir em múltiplas dimensões.


Essa abordagem onírica se opõe ao cinema tradicional, baseado na lógica da causa e efeito, da progressão linear e da clareza narrativa. No cinema de Lynch, o tempo se fragmenta, os espaços colapsam, e os personagens não seguem um desenvolvimento psicológico convencional.


Essa desconstrução é justamente o que aproxima sua obra da linguagem dos sonhos descrita por Freud: não há lógica racional, mas sim condensações, deslocamentos, simbolizações.


Os sonhos, para Freud, eram uma expressão cifrada dos desejos inconscientes, e o cinema de Lynch atua de forma semelhante — não se trata de explicar, mas de provocar, evocar e perturbar.

O Espelho | Divulgação
O Espelho | Divulgação

Outro cineasta que soube como poucos traduzir a estética do sonho em imagens foi Andrei Tarkovsky. Em O Espelho (1975), o diretor russo constrói uma obra profundamente pessoal e fragmentada, onde o passado, o presente e o imaginário se entrelaçam sem distinção clara.


A narrativa de O Espelho é guiada não por eventos externos, mas por estados emocionais, lembranças, sensações. Tarkovsky utiliza recursos como a alternância entre preto-e-branco e cor, a manipulação do tempo e da memória, a sobreposição de vozes e sons para criar uma experiência que remete ao fluxo contínuo do pensamento e da memória — algo muito próximo do que vivenciamos ao sonhar.


A estética onírica em Tarkovsky, no entanto, difere da de Lynch. Se no cineasta americano o sonho é muitas vezes um pesadelo caótico e perturbador, em Tarkovsky o sonho é melancólico, poético, carregado de espiritualidade.


Há uma busca pelo sublime, pelo transcendente, por uma espécie de tempo interior que se sobrepõe ao tempo histórico. O Espelho não explica, não narra — ele sugere, insinua, emociona.


Tarkovsky dizia que a função do cinema não era entreter, mas elevar a alma do espectador. E essa elevação se dava justamente pela evocação do que ele chamava de "tempo esculpido": imagens que duram, que se demoram, que permitem ao espectador habitar um estado contemplativo próximo ao devaneio.

8½ | Divulgação
| Divulgação

Federico Fellini também é uma figura importante na relação entre cinema e sonho. Em obras como (1963), o cineasta italiano embaralha realidade e fantasia, vida e imaginação, passado e presente.


O filme acompanha um diretor em crise criativa que revisita suas memórias, seus desejos e seus medos por meio de uma estrutura não-linear e imagética. O próprio Fellini declarou inúmeras vezes que era fascinado pelo universo dos sonhos, chegando a registrar suas experiências oníricas em diários ilustrados que influenciavam diretamente seus filmes.


A abordagem de Fellini é marcada pelo barroquismo visual, pelo humor surreal, pelo excesso — seus sonhos são espetaculares, carnavalescos, mas igualmente reveladores de conflitos profundos.


Dentro desse universo cinematográfico onírico, vale destacar também o filme Sonhos (1990), de Akira Kurosawa. Baseado em sonhos reais do próprio diretor, o filme é estruturado em oito segmentos independentes, cada um representando uma experiência onírica distinta.

Sonhos | Divulgação
Sonhos | Divulgação

Sonhos não adota somente a forma fragmentária e simbólica dos sonhos, como também utiliza cores intensas, elementos da natureza e uma direção poética para transmitir emoções que seriam difíceis de expressar de maneira direta.


A obra de Kurosawa mostra como o cinema pode ser uma ferramenta para acessar não apenas a mente, mas a alma, e revela como as imagens dos sonhos podem carregar verdades mais profundas do que os fatos.


O uso da estética do sonho também é visível em cineastas contemporâneos como Apichatpong Weerasethakul, cujos filmes frequentemente borram os limites entre vigília e sono, vida e morte, espírito e corpo.


Em obras como Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), o diretor tailandês cria um universo cinematográfico onde o tempo é cíclico, as identidades são fluidas e o sobrenatural é integrado ao cotidiano.


A lentidão dos planos, o som ambiente, a ausência de explicações narrativas e a imersão sensorial fazem com que os filmes de Apichatpong sejam mais experiências meditativas do que narrativas convencionais — experiências próximas ao estado de sonho lúcido. Não se trata apenas de retratar sonhos em tela, mas de adotar uma linguagem que funcione como o próprio sonho: uma narrativa simbólica, fluida, subjetiva.

Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas | Divulgação
Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas | Divulgação

A estética do sonho no cinema é, portanto, uma proposta estética e filosófica. Ela questiona os parâmetros de representação realista, desafia o espectador a abandonar a lógica, convida à contemplação e à introspecção.


Em tempos em que o cinema é muitas vezes pautado pela velocidade, pelo excesso de informação e pela previsibilidade, os filmes que evocam o sonho oferecem uma experiência alternativa — uma pausa, um mergulho, um convite à imaginação.


Esses filmes não são fáceis, nem confortáveis. Eles exigem do espectador uma disposição ao enigma, à dúvida, à contemplação. Mas, ao fazê-lo, oferecem algo raro: uma experiência estética profunda e transformadora.


Como dizia Carl Jung, "quem olha para fora, sonha; quem olha para dentro, desperta". O cinema onírico, ao olhar para dentro, desperta não somente o inconsciente, mas a possibilidade de pensar, de sentir e de perceber o mundo de maneira diferente.


O sonho, no cinema, é mais do que um tema — é uma linguagem. Uma linguagem que desafia, que liberta, que revela. E que, ao fazer isso, transforma a tela em espelho do inconsciente humano, onde cada imagem carrega mais do que se vê, mais do que se entende: carrega o que se pressente, o que se teme, o que se deseja.


O cinema onírico é, nesse sentido, uma arte da alma. E talvez, por isso, ele permaneça sempre atual — porque os sonhos, como o cinema, jamais cessarão de nos assombrar.

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