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Artigo | O Sentimento de Isolamento: Dando forma à solidão

Ela | Divulgação
Ela | Divulgação

A solidão, embora inerente à condição humana, é muitas vezes um sentimento invisível, um silêncio que ecoa no fundo das relações e da vida cotidiana. Desde o romantismo, passando pela angústia existencial do século XX, a solidão tem sido uma constante nas artes — da literatura à pintura, do teatro ao cinema — refletindo os modos como o sujeito moderno se vê diante de si mesmo e do mundo.


No cinema, no entanto, ela ganha forma, cor, som e espaço. A linguagem cinematográfica tem a capacidade única de tornar visível o que é interno, de materializar subjetividades através de enquadramentos, silêncios, planos longos e atmosferas.


A estética da solidão no cinema não é só uma representação de personagens solitários, mas a construção sensível de um estado existencial que transcende a narrativa, que atravessa a imagem como uma presença constante.


Diretores como Spike Jonze, Martin Scorsese e John Schlesinger exploram essa dimensão com maestria, criando filmes que não apenas falam sobre solidão, mas que fazem o espectador senti-la na pele.


No filme Ela (2013), de Spike Jonze, a solidão é o ponto de partida de uma reflexão sobre o amor, a tecnologia e a fragilidade das conexões humanas. Theodore, o protagonista, é um homem solitário, imerso em uma rotina de melancolia silenciosa, trabalhando para escrever cartas pessoais para desconhecidos enquanto evita confrontar seu próprio vazio.


A estética do filme contribui diretamente para a construção desse sentimento: a paleta de cores suaves, os ambientes amplos e impessoais, a câmera que frequentemente o enquadra de costas ou em planos abertos onde sua figura parece pequena e deslocada.


O futuro imaginado por Jonze é habitado por pessoas solitárias que falam mais com máquinas do que entre si. Mas a solidão de Theodore não é apenas tecnológica, é profundamente emocional. Sua relação com o sistema operacional Samantha é uma tentativa de superação desse vazio e uma ilustração de sua extensão.


O amor que ele sente é real, mas a ausência de um corpo, de uma presença física, reforça a ideia de que até mesmo os laços mais íntimos podem ser vividos em completo isolamento.

Taxi Driver | Divulgação
Taxi Driver | Divulgação

Em Taxi Driver (1976), Martin Scorsese mergulha no abismo da solidão urbana através de Travis Bickle, um ex-fuzileiro solitário que vaga pelas ruas de Nova York, incapaz de se conectar com qualquer pessoa de maneira genuína. O filme é construído a partir do ponto de vista de Travis, e isso inclui sua narrativa, mas também sua percepção distorcida da realidade.


A câmera de Scorsese frequentemente o mostra em reflexos, em espelhos, em movimentos de afastamento, criando uma sensação constante de distanciamento. Nova York aparece como uma cidade suja, barulhenta e indiferente, povoada por fantasmas que cruzam uns pelos outros sem jamais se tocar.


A trilha sonora de Bernard Herrmann intensifica a sensação de alienação, com seu jazz melancólico e dissonante, enquanto o monólogo interior de Travis revela um homem em guerra com o mundo e consigo mesmo. Sua violência não é apenas um ato de ruptura, mas um grito desesperado por pertencimento, por visibilidade. O gesto extremo de se tornar um justiceiro é, paradoxalmente, a tentativa de dar sentido a uma existência que ele sente como vazia.


Já em Perdidos na Noite (1969), de John Schlesinger, a solidão assume um caráter quase estrutural. O filme acompanha Joe Buck, um jovem ingênuo do interior que vai para Nova York com a ilusão de se tornar um acompanhante de mulheres ricas. O que ele encontra, no entanto, é um mundo hostil, frio e desumano. A cidade é filmada de maneira crua, com uma câmera que não suaviza os contrastes nem esconde a degradação.


Joe, com seu chapéu de cowboy e seus trejeitos afetados, é um corpo deslocado naquele espaço, um estrangeiro em sua própria fantasia. A solidão dele é agravada pela falta de referências, pela perda do sentido de identidade, pela ausência de qualquer laço real.

Perdidos na Noite | Divulgação
Perdidos na Noite | Divulgação

Sua amizade com Ratso Rizzo, outro marginalizado pela cidade, é a única âncora emocional possível, mas mesmo ela é marcada pela precariedade e pelo desamparo. O final do filme, profundamente tocante, não oferece consolo. A morte de Ratso no ônibus é o ponto final de uma jornada de fracasso e exclusão. O close em Joe, tentando conter o choro e manter a pose, é um dos momentos mais potentes da solidão no cinema, pois revela, em silêncio, o colapso de uma promessa de vida.


A estética da solidão, nesses filmes, vai além da escolha de personagens isolados. Ela se constrói na mise-en-scène, na direção de arte, no som, na montagem, na iluminação. Cada elemento do filme é manipulado para gerar a sensação de afastamento, de desconexão, de vazio.


Em Ela, os espaços amplos e assépticos reforçam o isolamento emocional. Em Taxi Driver, a câmera subjetiva e os espelhos criam uma sensação de enclausuramento psicológico. Em Perdidos na Noite, a crueza visual e os ruídos da cidade enfatizam a brutalidade do abandono.


O espectador não apenas vê a solidão, ele a experimenta. Há um trabalho sensorial e emocional que visa não só representar, mas transmitir. E, nesse processo, a solidão não se revela apenas como experiência emocional ou psicológica, mas também como condição social.


O cinema tem sido um espaço privilegiado para mostrar, por exemplo, a solidão dos idosos, muitas vezes invisibilizada, marcada por abandono familiar, institucionalização ou silêncio afetivo. Filmes como Amor (2012), de Michael Haneke, escancaram com brutal delicadeza esse isolamento vivido no fim da vida, quando o tempo se dilata e o mundo parece ir embora aos poucos.

Amor | Divulgação
Amor | Divulgação

Outros olhares, como o da diretora belga Chantal Akerman, especialmente em Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), também lançam luz sobre formas de solidão feminina, doméstica e cotidiana, com uma precisão formal que transforma a repetição em angústia. Sua câmera imóvel e atenta mostra que, muitas vezes, a solidão mais devastadora é aquela que se vive entre paredes conhecidas.


O que esses filmes compartilham, além da excelência cinematográfica, é a recusa de soluções fáceis. A solidão, neles, não é um obstáculo a ser superado com otimismo. Ela é uma condição existencial que se instala, que molda o sujeito, que define sua relação com o mundo. E o cinema, ao invés de suavizá-la, a intensifica.


Ao fazer isso, rompe com as convenções do entretenimento escapista e propõe uma forma de arte que interroga, que incomoda, que mergulha naquilo que há de mais humano: a angústia de estar só mesmo quando se está cercado de gente.


A estética da solidão é, assim, uma estética da verdade. Uma verdade desconfortável, mas necessária, que o cinema revela com sua linguagem única, capaz de transformar o invisível em imagem e o silêncio em grito.

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