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Artigo | Sentindo o Filme: Cheiros, Sabores, Texturas

Ratatouille | Divulgação
Ratatouille | Divulgação

É fascinante como o cinema, embora seja uma arte essencialmente visual e sonora, consegue evocar sensações que vão além do que é mostrado na tela ou ouvido nas trilhas sonoras.


Entre essas sensações, aquelas ligadas à memória sensorial — o cheiro de algo familiar, o gosto de uma comida de infância, a textura de um toque — ocupam um lugar privilegiado no imaginário cinematográfico.


Mesmo sem poder reproduzir literalmente esses sentidos, o cinema é especialista em sugeri-los, em invocá-los de modo a provocar no espectador reações físicas e emocionais que dialogam diretamente com suas próprias lembranças.


A memória sensorial, nesse contexto, se torna uma ponte entre o que é assistido e o que é vivido, dando ao cinema uma dimensão sensorial que ultrapassa os limites do visível. A representação do olfato, do paladar e do tato no cinema envolve uma alquimia narrativa e estética específica.


Diretores que exploram essas sensações buscam na montagem, no ritmo, na textura das imagens e na presença simbólica dos objetos e alimentos um modo de transcender o registro literal.


As mãos que tocam uma superfície rugosa, o vapor que sobe de um prato quente, a luz filtrada que revela a poeira do ambiente — todos esses elementos são utilizados com precisão para evocar sensações físicas. Filmes como O Tempero da Vida (2003), Ratatouille (2007) e O Gosto da Cereja (1997) representam, cada um à sua maneira, estratégias distintas de como o cinema pode acionar memórias sensoriais e afetivas.

O Tempero da Vida | Divulgação
O Tempero da Vida | Divulgação

Em O Tempero da Vida, do diretor Tassos Boulmetis, o uso da culinária como linguagem narrativa vai muito além do alimento como símbolo cultural. A trama, centrada em um astrofísico que revisita seu passado na Istambul de sua infância, utiliza os temperos como metáfora para a passagem do tempo e para os vínculos emocionais entre os personagens.


O filme explora visualmente as especiarias, seus modos de preparo e os gestos quase ritualísticos de cozinhar como um processo meditativo e evocador. Os planos fechados sobre os ingredientes, o som dos grãos sendo moídos, o movimento das mãos sobre as panelas criam um espaço onde o espectador quase sente o cheiro da canela, do cardamomo e do cominho.


Essa experiência sensorial, mediada pela linguagem cinematográfica, aciona lembranças pessoais nos espectadores, especialmente aquelas ligadas à infância, à cozinha da avó, ao cheiro do pão saindo do forno. A memória sensorial, nesse caso, é tanto coletiva quanto íntima, um elo entre tradição e experiência individual.


De outra forma, Ratatouille, da Pixar, utiliza a animação para criar um universo visualmente sinestésico. A história do ratinho Remy, que sonha em se tornar um chef de cozinha, é uma celebração da comida como arte, como experiência subjetiva e como meio de comunicação afetiva.


Um dos momentos mais marcantes do filme ocorre quando o temido crítico Anton Ego prova o ratatouille preparado por Remy e é instantaneamente transportado à sua infância. Essa cena é um exemplo perfeito da potência da memória sensorial: o gosto do prato funciona como um gatilho para lembranças profundas e emocionais, desarmando a postura cínica do personagem e revelando a fragilidade por trás da máscara de autoridade.


A construção da sequência é sensacional: a paleta de cores muda sutilmente, a música adquire um tom nostálgico, a montagem desacelera o tempo. O espectador não sente literalmente o gosto da comida, mas compartilha da reação do personagem — e, por identificação, é convidado a acessar suas próprias lembranças ligadas à comida e à infância.

O Gosto da Cereja | Divulgação
O Gosto da Cereja | Divulgação

O Gosto da Cereja, de Abbas Kiarostami, oferece uma abordagem radicalmente distinta, marcada por uma estética minimalista e contemplativa. O protagonista, um homem que circula por Teerã em busca de alguém que o ajude a morrer, se relaciona com o mundo de forma extremamente sensorial, mesmo diante da aridez emocional da narrativa.


Por si só, o título do filme já evoca uma memória gustativa e afetiva. Em uma das cenas principais, um velho jardineiro tenta convencer o protagonista a não cometer suicídio, contando a história de quando tentou se matar e foi salvo pelo gosto de uma cereja. O sabor da fruta, simples e luminoso, lhe devolveu o desejo de viver. O filme, aqui, utiliza o paladar como símbolo do reencontro com a vida, da beleza contida nas pequenas sensações.


Não há imagens explícitas da cereja, mas a força do que é contado e o modo como é inserido na narrativa criam no espectador uma resposta quase tátil. A sugestão do sabor, ligada à experiência da memória e ao prazer físico,  ganha um peso filosófico enorme.


Essa capacidade do cinema de sugerir o invisível e o intangível encontra respaldo em teorias sobre a sinestesia e a multisensorialidade da experiência estética. A pesquisadora Laura Marks, em seu conceito sobre a visualidade háptica, argumenta que há momentos em que o olhar do espectador se torna tátil, como se a imagem tocasse sua pele.


Isso ocorre quando os enquadramentos, texturas, granulação da imagem e ritmo da montagem produzem um envolvimento corporal com o filme. A imagem, então, não é apenas vista: é sentida. Essa ideia é particularmente relevante para pensar como o cinema acessa os sentidos que não são diretamente estimulados pela sala escura.


Ao compor uma mise-en-scène que enfatiza superfícies, temperaturas, consistências, os cineastas conseguem evocar a textura de uma pele suada, o calor de um verão abafado, a aspereza de uma parede de concreto ou a suavidade de um lençol de algodão. Essas texturas visuais desencadeiam sensações físicas em quem assiste.

Tampopo: Os Brutos Também Comem Spaghetti | Divulgação
Tampopo: Os Brutos Também Comem Spaghetti | Divulgação

Outro exemplo interessante é encontrado em Tampopo: Os Brutos Também Comem Spaghetti (1985), de Jûzô Itami, uma comédia japonesa que gira em torno da preparação do ramen perfeito. A narrativa entrelaça várias histórias ligadas à comida, mas é sobretudo a maneira como a câmera se debruça sobre o preparo dos pratos que transforma o filme em um banquete sensorial.


Há um cuidado extremo na coreografia dos gestos, no brilho dos caldos, no vapor que sobe das tigelas. As imagens são quase eróticas em sua sensualidade visual. Ao focar no detalhe — o corte da carne, o girar dos hashis, o som do caldo borbulhando — o filme ativa não só o apetite como também a memória afetiva da refeição.


Comer, nesse contexto, é um ato de conexão com o mundo e com os outros, uma forma de pertencimento e de ritualização da vida cotidiana. Essas estratégias não são restritas a filmes que tematizam diretamente a comida.


Em O Segredo de Brokeback Mountain (2005), por exemplo, há uma cena de intensa carga tátil e emocional quando Ennis del Mar cheira a camisa usada por Jack Twist, seu amante morto. Esse gesto simples — o ato de sentir o cheiro impregnado no tecido — carrega uma força devastadora de memória e ausência.


O cinema, ali, não mostra o cheiro, mas confia na empatia sensorial do público, que compreende a densidade emocional do momento. A presença do corpo através do vestígio — o tecido, o cheiro, a memória do toque — transforma a experiência fílmica em algo visceral.

O Segredo de Brokeback Mountain | Divulgação
O Segredo de Brokeback Mountain | Divulgação

Filmes como Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, também mergulham nessa sensorialidade. A perspectiva dos anjos, que observam os humanos sem poder tocá-los, é um convite a refletir sobre a experiência sensorial como parte essencial da existência. Quando um dos anjos abdica da imortalidade para se tornar humano, o primeiro contato com o mundo físico — o frio do metal, o sangue na testa, o calor do café — é filmado com uma intensidade tátil que revela a preciosidade dos sentidos. O cinema, neste caso, celebra o corpo e suas percepções como a verdadeira âncora da existência no mundo.


É significativo que muitos desses filmes associem a memória sensorial à infância, à morte ou ao amor. Isso porque os sentidos mais básicos — o cheiro, o gosto, o toque — estão ligados às experiências mais primitivas e fundamentais da vida. O cinema, ao recuperar essas sensações, ativa não apenas memórias individuais, mas também uma gramática universal do afeto.


A estética sensorial do cinema é, nesse sentido, uma forma de resistência ao distanciamento, à abstração e à espetacularização vazia. Ela convida o espectador a lembrar que é um corpo, que sente, que tem história — e que compartilha, ainda que em silêncio, das sensações inscritas na tela.


Portanto, a evocação sensorial no cinema não é só um recurso estético ou uma curiosidade narrativa. É uma poética que transforma a própria forma de contar histórias, tornando a imagem cinematográfica uma extensão da nossa pele, da nossa boca, do nosso nariz.


Os filmes citados e muitos outros não só mostram o mundo — eles o fazem sentir. E, fazendo isso, expandem as fronteiras do que o cinema pode ser: não apenas uma arte do olhar, mas uma arte do corpo inteiro.

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